Poeta, escritor, amante da música e da arte. Um ser humano muito simples em busca do significado profundo da vida, que é o amor, por onde a humanidade ganha sentido no exercício da fraternidade.
sexta-feira, 1 de maio de 2015
Amor além do espetáculo do circo
Os caminhões do circo ao longo da estrada empoeirada formavam um comboio gigantesco. Atravessavam cidades interioranas sacudindo em suas boleias os sonos mal dormidos de suas dançarinas. Não vamos aqui imaginar o que os animais viam por dentro de suas grades, ao passar suas retinas pelas cerrações baixas das serras pontiadas de estrelas sorridentes. Nem nos cabe medir o salto sobrenatural dos anões em seus cochilos de duas em duas horas.
O que nos trouxe a este fato foi o amor surgido entre dois artistas que se encontraram numa campanha e nunca mais se desgrudaram. Um sentimento surgido das cinzas de ambos, misturando o ôntico e o caos e se há o provérbio de que dois narcisistas não se casam, parece que neste caso, rompeu-se este contrato psíquico.
Podemos afirmar, ou quem sabe perscultar, se um indivíduo que leva ao máximo do perfeccionismo a sua profissão, seja um narciso enlouquecido por si mesmo. Caso o mundo se despedace, que não se desmorone o espelho e que não desvaneçam as ninfas refletidas em seu ego.
Rosalvo, um mágico de primeira linha, acima de qualquer suspeita, pois tirava pombos da manga do paletó, sendo que nenhum destes pássaros fora visto antes ou depois nas cercanias do espetáculo.
Além daqueles que sopram a tocha e engolem fogo, sabe-se que numa noite de tempestade para evitar a destruição do acampamento, tragou duas dúzias de raios de uma tempestade aterrisadora.
Numa noite, enfurecido com uma criança que aos berros roubava-lhe a atenção do espetáculo, virou o circo pelo avesso e quando todos num relance olharam para baixo e para os lados, estavam sentados no teto do circo, que naquele momento se transformara numa grande bacia de lona.
Odete, uma contorcionista das mais hábeis já retorcidas, comenta-se que para distrair-se, após o cansaço de embebedar plateias lotadas, andava por entre os pingos de chuvas torrenciais sem molhar-se por uma gota.
Apaixonaram-se não à primeira vista, porque o mágico para impressioná-la despareceu como por encanto e na segunda vista, ela confundiu-se no meio de uns rolos de cordas, de forma que ele não a encontrou em lugar algum.
A paixão virou possessão por parte do mágico e na vida circense casa-se passando de um camarim para outro. Não dormiam juntos e se amavam separadamente como o badalo se realiza ao bater no bronze do sino.
Terminava o espetáculo, Rosalvo trancava-a numa grande caixa de madeira, de dar água na boca a qualquer sarcófago faraônico. Trancava-o e passava-lhe a chave. A caixa muito bem feita por um carpinteiro de primeira mão, era toda de braúna e a fechadura de cobre martelado.
Desta forma vivia aquela donzela que iniciara sua vida fugindo na garupa do cavalo de um cigano e que de tanto se virar para sobreviver, tornou-se mais maleavel que cambraia em babado de aposento real.
Da caixa para o palco e deste para a caixa. Rosalvo sobrepunha-lhe o olhar e ela silenciosamente se dirigia à sua prisão ou quem sabe ao único espaço onde poderia se espichar e rolar ao som de somente um olhar.
Foi numa noite de Natal, sem mangedoura, sem maria com tez italiana cuidando de um bebê gorduchinho, ao som estridente de foguetes das festas familiares que Odete acordou de seu sono hipnótico.
Enquanto Rosalvo dormia no ponto, ela contorceu-se ao máximo que pode e atravessando o buraco da fechadura, acompanhou um raio tênue de luz pelo chão e confundindo-se com os meio fios da cidade, buscou asilo na eterna escuridão.
O mágico ao abrir a caixa no dia seguinte, ao vê-la vazia, enlouqueceu de tal forma esdrúxula, findando seus dias fazendo caretas para os passarinhos que não sobrevoavam por sobre o céu do hospício.
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