quinta-feira, 1 de março de 2018

Que hoje seja novamente

Que hoje seja novamente (José Do Amaral) Hoje gostaria de ser menino e escrever rabiscos pelo chão no fundo de quintal de minha casa interiorana. As minhas alpargatas que não eram minhas de tão grandes, me serviam de mata borrão! Gostaria de riscar o chão com um galhinho de goiaba e acreditar profundamente em meu coração que o mundo inteiro um dia saberia que o meu gato morreu e que nunca mais eu lhe daria um pedacinho de queijo. Na linha debaixo, uma que ficasse por baixo do tapete dos caracteres desenhados, gostaria de deixar registrado que comi escondido duas cocadas da cristaleira. Olhar para aqueles tracinhos no chão com a percepção infantil de que eram mais belos que aqueles dos jornais recebidos pelo papai, pois minhas letras eram livres, não eram cursivas e não tinham destino, pois cavalgavam por campos sem fim e subiam as montanhas mais íngremes.. Algumas representavam os rastros dos barquinhos de papel que jogava por sobre as ladeiras abaixo, enquanto outras imitavam os sinos a tocar do alto da matriz . Hoje gostaria de escrever letras esvoaçantes condizentes com as incômodas lacerdinhas da praça e para isto o quintal era bem grande. Gostaria de escrever de novo o primeiro poema que escrevi para uma borboleta onde perguntava quantos mundos ela via com tantos olhos existentes em suas asas. Hoje gostaria de escrever novamente aqueles poemas enigmáticos que poderiam ser lidos de diversas formas, pois possuíam conteúdos, estórias e possibilidades mil a cada momento. Hoje gostaria de escrever aqueles garranchos antes de minha alfabetização que tentando me organizar em uma gramática e de empacotar dentro de um dicionário, me desorganizou minha inspiração, sendo que às vezes custo me reequilibrar sobre a corda bamba deste momento e das lembranças para recuperar meu elo perdido do que é lúdico e original. Hoje gostaria de escrever meus poemas com aquele galhinho de goiaba e ter a possibilidade de parar para sair acompanhando uma formiga cabeçuda que ia me contando as estórias de sua vida e sua luta e que depois entrava em seu formigueiro porque ela vivia no outro lado do mundo. Hoje gostaria de deixar escrito novamente um aviso para o Bicho Papão abrir o olho comigo, porque eu tenho sangue daquele povo lá dos Pontões e nós não temos medo de assombração. Mas os versos mais lindos eu os escrevi para a minha primeira namorada. Aquela que nunca beijei. Aquela que nunca toquei em suas mãos. Aquela que foi meu segredo. Aquela que quando apenas vi seu rosto e seu semblante senti um “troço” aqui dentro, tão poderoso, tão forte, que sempre quando posso, olho para a direita e ilumino o meu levante. Os amores dos tempos da inocência são os raios de sol que iluminam mesmo à noite.

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