
Lá naquele alto de serra, num povoado sempre coberto de neblina e silêncio, viviam maravilhosamente dois amigos: Seu Aniceto e Seu Pinto barbeiro.
Enquanto um desenhava caminhos e símbolos enigmáticos pelo ar com seu laço de vaqueiro, o outro bailava sua navalha dançarina nos rostos mais rudes do lugar.
A amizade dos dois acumulava antigas gerações. Seu Pinto barbeiro fora criado no colo da avó de seu Aniceto.
Uma das mais belas paisagens familiares interioranas são estas alianças conferindo grau de irmandade aos seus membros. Contratos ao nível consanguíneo erguidos nas capelas de batismo e nos arredores dos terreiros de café.
Compadres, comadres, padrinhos, afilhados, primos dos últimos graus, trabalhadores das fazendas, todos numa malha social urbana aconchegando-se pelas laterais do lócus social.
Não havia um lugar no mundo tão feliz como aquele. Nem a rainha da Inglaterra vivia num paraíso tão encantado. Nem mesmo Eva e Adão antes da entrada da serpente!
Mas quando a ingenuidade mora perto da alegria pode acontecer uma diáspora na felicidade.
Nesta época, iniciava-se a utilização das inseticidas, agrotóxicos, adubos químicos, pesticidas e toda esta multidão de defensivos químicos, outrora armas de guerra.
A indústria encontrara um novo mercado na paz dos campos, não agora de batalha entre homens, mas entre homens e a natureza. No final sairiam perdendo todos os homens, mas o capitalismo não vê a vida por esta ética.
O negócio começou da seguinte forma. Chegava ao povoado um caixeiro viajante com amostras de todos aqueles produtos. Conclamava todo o povo para a praça. Fazia um enorme discurso, mostrando somente as vantagens iniciais para quem os comprasse.
Desta forma, apresentou-se um representante, percorrendo toda a cidadezinha por uma semana, numa rural com alto falante, convidando o povo para uma demonstração no domingo após a missa da manhã.
Assim, do alto do coreto da praça, um destes profetas do apocalipse, urrou: “Vim aqui para acabar e matar o inseto!”.
Pronto, foi o bastante para seu Aniceto esconder-se num cafezal, sendo abastecido com comida e água pela presença permanente do Seu Pinto barbeiro.
Vendeu tudo e mudou-se para a cidade grande, levando consigo também seu amigo com família.
Comprou um prédio, vivendo tranquilo de aluguéis de salas e lojas. Antes cheirar a poluição, perante o risco de perder a vida em volta do aroma rural e da tradicional chaleira de café no fogão a lenha.
Doou uma loja para seu amigo tocar a sua vida. Pontualmente, todo o dia comparecia no salão do barbeiro, para contar e rememorar os casos antigos.
O momento era aproveitado também para ler em voz alta o jornal. Embora semialfabetizado, suas palavras tropeçavam pelas letras como um bêbado em noite de lua minguante numa rua enlameada.
“Óia aqui amigo. Vinha uma cômbida em arta velocidade, atropelô um mortoquero. Pegô fogo e explodió!”.
A tradicional pergunta vinha logo em seguida: “Eis morreu?”.
Aos poucos a vida da cidade foi-se incorporando em suas existências. O barbeiro comprou uma enorme televisão e fixou-a na parede lateral do salão.
Assim, ele executava seu trabalho assistindo os programas pelo espelho, confiando plenamente em sua perícia manual de décadas na profissão.
Um belo dia Aniceto sentou-se na cadeira para o tradicional retoque do amigo. Começaram a relembrar os tempos de roça. Estórias de onças pintadas e trombas d’águas assustadoras.
Lembranças dos momentos inesquecíveis das festas de São João. As violas atravessando as madrugadas debaixo do sereno e de cada gole de pinga. A emoção tomou conta do Seu Pinto barbeiro.
Ele foi se esticando, envermelhando e morrendo subitamente de uma síncope cardíaca.
No último lance da navalha levou consigo seu predileto amigo. Um drama assinalando o destino com uma triste fatalidade.
Este foi o fim do Seu Aniceto e Seu Pinto barbeiro. Eis, morreram!!!
Nenhum comentário:
Postar um comentário